O teorema da utilidade do dinheiro novo demonstra que nem todo novo dinheiro que surge no mercado, mesmo que tenha características comprovadamente melhores que os existentes, será mais útil que eles.
Não interessa se ela é coroa
Panela velha é que faz comida boa
Definindo um bom dinheiro
Obs.: Se você já sabe o que define um bom dinheiro, pule esta parte.
Dinheiro é alguma coisa que serve para: 1) armazenar riqueza ao longo do tempo de forma não perecível (bateria de riqueza). 2) realizar trocas diretas, sem a necessidade de ter que fazer diversas trocas intermediárias (elemento neutro).
Um bom dinheiro é aquele que atende bem os itens 1 e 2. Para atender bem o item 1, o dinheiro precisa manter ou melhorar o seu poder de compra ao longo do tempo. Uma boa “bateria de riqueza” é aquela que conserva a riqueza por mais tempo ou que tenha alguma evidência de que se valorizará no futuro. Para atender bem o item 2 o dinheiro precisa ser bastante aceito e ser adotado como padrão pelo mercado, ou pelo menos uma parte significativa dele. Quanto mais indivíduos, empresas, sociedades, nichos, comunidades etc. usarem e aceitarem o dinheiro, ou pelo menos reconhecerem o seu valor, mais fácil será fazer trocas diretas ou com poucos intermediários, pois haverá mais liquidez no mercado.
O item 2 quase que deriva do item 1. Se um grupo de indivíduos faz poupança com determinado dinheiro, ele tende a dar valor a ele e a aceitá-lo diretamente.
Vamos a exemplos práticos: no item 1, a moeda fiduciária de curso forçado (Real, Dólar, Euro e etc.) podemos chamar de “estável-” (estável menos). Ou seja: ela tende a ser estável em curto/médio prazo, porém tende a se desvalorizar ao longo dos anos e décadas. Na analogia da bateria, uma moeda fiduciária seria uma bateria que dura bem, mas descarrega ao longo do tempo, tendendo a zero. É fácil deduzir o motivo: o curso forçado faz com que seu “marketcap” seja alto, diminuindo a volatilidade, porém a impressão desenfreada pelo Estado que a controla faz com que ela perca valor ao longo do tempo.
Já o ouro seria “estável+” (estável mais). Ou seja: tende a ser estável em médio prazo mas tende a se valorizar com o tempo. É como um bom vinho bem armazenado. A estabilidade do ouro se dá pelo seu grande “marketcap”. Apesar de não ser aceito em cada esquina, uma parte significativa do mercado utiliza e dá liquidez ao ouro, garantindo uma estabilidade mínima. A tendência de se valorizar com o tempo se dá pelo motivo oposto da moeda fiduciária: não é possível imprimir ouro (apesar de ser possível falsificar papel de ouro [1]).
O Bitcoin podemos dizer que é “volátil++” (volátil mais mais). Na analogia da bateria, seria como uma bateria que pode “pifar” a qualquer momento, ou perder metade da capacidade de repente, porém ela possui algum tipo de turbo que – se ela não morrer no curto prazo – provavelmente valorizará muito no futuro. Ele é volátil em curto prazo pois seu “marketcap” é relativamente muito pequeno. Apenas um grupo de pessoas bastante especializadas confiam e utilizam o Bitcoin para poupar. Apesar disso, ele tem um potencial de se valorizar ainda mais que o ouro, justamente por valer muito menos e ter uma característica que corrige um problema grave do ouro e importante nos dias atuais: o da portabilidade [1].
Cenário absurdo
Para resumir bem o teorema, vamos extrapolar para um cenário absurdo: vamos supor que exista apenas o dinheiro A, que ele é nota 10/10 nos itens 1 e 2 explicados no cap. anterior. Ele é amplamente aceito no mercado, e todo mundo confia e faz poupança dele; e ele sempre mantém o poder de compra ou se valoriza ao longo do tempo. Vamos supor também que A é um metal. O metal mais nobre, com características físicas excelentes e bastante escasso. – Todos estão felizes até que… Algo melhor surge no mercado! Alguém descobre um novo metal B que tem algumas características físicas ainda melhores. O mercado opta por trocar de forma massiva A por B. O que vai acontecer com A? A vai tender a zero e quem trocar primeiro A por B sairá na frente, quem chegar atrasado vai sobrar com um mico nas mãos.
Quem armazenou muita riqueza em A certamente vai ficar um pouco aborrecido porque nessa “corrida” pode ter chegado atrasado por acaso e ter perdido poder de compra durante a troca. Eventualmente alguns sortudos que não armazenaram A mas compraram B rapidamente quando ainda valia pouco ficarão felizes. Legal! Agora temos os novos nobres da sociedade. Mas, todos estavam se acostumando com o novo cenário até que… Ops, descobriram o metal C! Poxa, mas C é absurdamente melhor que B. O mercado novamente opta por trocar B por C de forma massiva. Mais uma vez, uma corrida que se tornará injusta e que punirá quem poupou e beneficiará quem for mais rápido. E aí surgem D, E, F, G, H etc. Depois de um tempo nesse cenário, qual vai ser o incentivo de alguém poupar H se ele sabe que vai surgir I, J, K, L? Num cenário hipotético assim seria impossível existir um bom dinheiro pois o item 1 nunca seria satisfeito.
O que realmente acontece
O que acontece na prática é que, para que o item 1 seja satisfeito e um dinheiro seja útil, a característica TRADIÇÃO no dinheiro se torna importante; muito mais importante as vezes que outras características. Tradição no dinheiro é: ele funciona, atende bem as necessidades, os itens 1 e 2. Só vou trocá-lo se valer muito a pena o risco. Se ninguém pensasse dessa forma teríamos o fenômeno explicado no cap. anterior e um monte de dinheiro inútil no mercado.
É bem simples visualizar isso na realidade de hoje: excluindo a bizarrice da moeda fiduciária que tem um curso forçado por lei (força física, com backup nas Forças Armadas), por que será que o Bitcoin não ultrapassa o valor do ouro instantaneamente, ou de forma rápida numa corrida maluca e desenfreada ao Bitcoin? O Bitcoin é notavelmente superior em dois pontos muito importantes: 1) É a prova de confisco. 2) É portável [1]. Mesmo assim, o mercado resiste bastante em trocar ouro por Bitcoin. E isso poderá levar mais de uma geração para acontecer! Você provavelmente estará morto quando isso ocorrer (a não ser que você esteja lendo um artigo muito antigo agora).
O mundo do dinheiro é diferente do mercado padrão de produtos e gadgets. Quando algo novo e mais barato surge por aí, ele é trocado numa velocidade incrível. Quem hoje tem televisão de tubo? Quem hoje usa velas para iluminar a casa? Quem anda de cavalo ao invés de carros? No mundo do dinheiro isso simplesmente não pode ocorrer pois a confiança no dinheiro acabaria se soubéssemos que na semana seguinte surgiria outra forma de armazenar riqueza e que ela seria adotada de forma rápida pelo mercado.
O Bitcoin só conseguiu sair do valor zero após um longo ano arrastado, porque foi uma quebra de paradigma muito grande. Uma inovação tão grande quanto a própria Internet. Dinheiro digital. Leve, portável, escasso, independente, a prova de confisco etc. Isso simplesmente não existia até então. Levou séculos para que surgisse no mercado algo realmente inovador, que fizesse algumas pessoas trocarem o seu brilhante ouro por um invisível Bitcoin. A inércia é muito grande.
E, quando surgiu o Bitcoin, alguns desbravadores [2] fizeram uma “mini corrida” que fez o seu preço levantar do zero para “alguma coisa relevante”. Uma segunda geração de desbravadores fez o seu preço dar um salto ainda maior. E mesmo depois de conhecido por praticamente metade de toda a população mundial, seu valor é muito menor que o do ouro.
Mas o dinheiro digital tem um “problema”: aquele cenário absurdo que provou a importância da tradição (cap. Cenário absurdo) é mais fácil de acontecer por um simples motivo: além de dinheiro, o dinheiro digital também é um software. E software tem essas características interessantes: 1) evolui rápido; 2) é fácil de copiar / colar. Por que não copiar / colar e evoluir? Ao invés de evoluir o que já existe, não seria mais lucrativo copiar a ideia e fazer uma versão melhorada? E é aí que os altcoiners atrapalham a evolução do Bitcoin: ao invés de focar energia na maior invenção que provavelmente você vai ter visto em vida, ficam desviando a atenção para evoluções mínimas, irrelevantes e que não vão melhorar o item 1 e 2 (cap. Definindo um bom dinheiro).
Mesmo num cenário onde é mais fácil que surjam dinheiros com características diferentes quase que diariamente, essas características dificilmente serão suficientes para gerar um mercado suicida que trocará diariamente toda sua riqueza já armazenada e que valoriza como um bom vinho, com esperança de valorização a longuíssimo prazo, por alguma coisa nova no mercado que apenas promete ser melhor. Tomar essa atitude irracional seria mergulhar num cenário absurdo onde criptomoedas não serão mais confiáveis para armazenar riqueza no longo prazo, sendo totalmente descartáveis para o propósito 1 e 2.
Além de tudo que foi dito, há uma prova simples que tradição é realmente importante, mesmo no mundo das criptomoedas onde tudo é muito recente: se a gente clonar o Bitcoin agora e criar o Bitcoin Catuaba ele terá as mesmas características do Bitcoin exceto: tradição, confiança prévia de outras pessoas no Bitcoin e mercado consolidado. São essas características que fazem o Bitcoin ser mais útil.
Sinto muito, sua altcoin preferida é inútil perto do Bitcoin.